terça-feira, 21 de outubro de 2014

Dado, Informação, Conhecimento e Competência - Continuação

Dado, Informação, Conhecimento e Competência


Valdemar W. Setzer

Depto. de Ciência da Computação, Universidade de São Paulo
vwsetzer@ime.usp.br
(Trecho do Artigo. Seções 5, 6 e 7)

(...)

5. Competência

Caracterizo Competência como uma capacidade de executar uma tarefa no "mundo real". Estendendo o exemplo usado acima, isso poderia corresponder à capacidade de se atuar como guia em Paris. Note-se que, nesse sentido, um manual de viagem, se escrito em uma língua inteligível, é lido como informação. Uma pessoa só pode ser considerada competente em alguma área se demonstrou, por meio de realizações passadas, a capacidade de executar uma determinada tarefa nessa área.
Pragmática foi associada a conhecimento. Competência está associada com atividade física. Uma pessoa pode ter um bom nível de competência, por exemplo, ao fazer discursos. Para isso, deve mover sua boca e produzir sons físicos. Um matemático competente não é apenas alguém capaz de resolver problemas matemáticos e eventualmente criar novos conceitos matemáticos – que podem ser atividades puramente mentais, interiores (e, assim, por uma de minhas hipóteses de trabalho, não-físicas). Ele deve também poder transmitir seus conceitos matemáticos a outros escrevendo artigos ou livros, dando aulas, etc., isto é, através de ações físicas (exteriores).
A criatividade que pode ser associada com a competência revela uma outra característica. Pode ser vinculada com a liberdade, que não apareceu nos outros três conceitos porque não havia qualquer atividade envolvida neles, exceto sua aquisição ou transmissão. No exemplo dado, um guia competente de Paris poderia conduzir dois turistas diferentes de forma diversa, reconhecendo que eles têm interesses distintos. Mais ainda, o guia pode improvisar diferentes passeios para dois turistas com os mesmos interesses mas com reações pessoais diferentes durante o trajeto, ou ainda ao intuir que os turistas deveriam ser tratados distintamente. Cusumano e Selby descrevem como a Microsoft Corporation organizou suas equipes de desenvolvimento de software de uma forma tal que permitissem a criatividade típica de "hackers" embora fossem, ao mesmo tempo, direcionadas para objetivos estabelecidos, mantendo a compatibilidade de módulos através de sincronizações periódicas [Cusumano 1997]. Aqui está uma outra característica distinta entre homens e animais em termos de competência: os seres humanos não se orientam necessariamente por seus "programas" como os animais e podem ser livres e criativos, improvisando diferentes atividades no mesmo ambiente. Em outras palavras, a competência animal é sempre automática, derivada de uma necessidade física. Os seres humanos podem estabelecer objetivos mentais para as suas vidas, tais como os culturais ou religiosos, que não têm nada a ver com as suas necessidades físicas. Esses objetivos podem envolver a aquisição de algum conhecimento e de certas competências, conduzindo ao auto-desenvolvimento.
Competência exige conhecimento e habilidade pessoais. Por isso, é impossível introduzir competência em um computador. Não se deveria dizer que um torno automático tem qualquer habilidade. O que se deveria dizer é que ele contém dados (programas e parâmetros de entrada) que são usados para controlar seu funcionamento.
Assim como no caso do conhecimento, uma competência não pode ser descrita plenamente. Ao comparar competências, deve-se saber que uma tal comparação dá apenas uma idéia superficial do nível de competência que uma pessoa tem. Assim, ao classificar uma competência em vários graus, por exemplo, "nenhuma", "em desenvolvimento", "proficiente", "forte" e "excelente", como proposto no modelo de competência do MIT [MIT I/T], ou "principiante" ("novice"), "principiante avançado" ("advanced beginner"), "competente", "proficiente" e "especialista", devidas a Hubert e Stuart Dreyfus [Devlin 1999 pg. 187], deve-se estar consciente do fato de que algo está sendo reduzido a informação (desde que se entenda o que se quer exprimir com esses graus). Existe uma clara ordenação intuitiva nesses graus, que vão de pouca a muita competência. Associando-se um "peso" a cada uma, como 0 a 4 no caso do MIT e 0 a 5 no caso dos Dreyfus (nesse caso, entenda-se 0 como "nenhuma), ter-se-á quantificado (isto é, transformado em dados), o que não é quantificável em sua essência. Desse modo, deve-se estar consciente também do fato que, ao calcular a "competência total" de alguém em áreas diversas – eventualmente requeridas por algum projeto –, usando pesos para os vários graus de competência, é introduzida uma métrica que reduz certa característica subjetiva humana a uma sombra objetiva daquilo que ela realmente é, e isso pode conduzir a muitos erros. A situação agrava-se nas habilidades comportamentais, tais como "liderança", "capacidade de trabalho em equipe", etc.
Não estou dizendo que tais avaliações quantificadas não deveriam ser usadas; quero apenas apontar que o sejam com extrema reserva, devendo-se estar consciente de que elas não representam qual competência tem realmente a pessoa avaliada. Elas deveriam ser usadas apenas como indicações superficiais, e deveriam ser acompanhadas por análises subseqüentes pessoais – e, portanto, subjetivas. No caso de seleção de profissionais, um sistema de competências deveria ser encarado como aquele que simplesmente fornece uma lista restrita inicial de candidatos, de modo que se possa passar a uma fase de exame subjetivo de cada um. Se o computador é usado para processar dados, permanece-se no âmbito do objetivo. Seres humanos não são entidades puramente objetivas, quantitativas e, desse modo, deveriam sempre ser tratados com algum grau de subjetividade, sob pena de serem encarados e tratados como quantidades (dados!) ou máquinas (isto é obviamente ainda pior do que tratá-los como animais).

6. Campos intelectuais

Essas caracterizações aplicam-se muito bem a campos práticos, como a informática ou a engenharia, mas necessitam elaboração subseqüente para campos puramente intelectuais. Examinemos o caso de um historiador competente. Não há qualquer problema com a sua competência: ela se manifesta por meio de livros e artigos escritos, eventualmente de conferências e cursos dados, etc. Por outro lado, é necessário estender a caracterização de conhecimento, de modo a abranger um campo intelectual como o da história: geralmente os historiadores não têm experiências pessoais dos tempos, pessoas e lugares do passado. Ainda assim, um bom historiador é certamente uma pessoa com muito conhecimento no seu campo.
Infelizmente, a saída que proponho para essa aparente incongruência de minha caracterização não será aceita por todos: admito como hipótese de trabalho que um bom historiador tem, de fato, uma experiência pessoal – não das situações físicas mas do "mundo" platônico das idéias, onde fica uma espécie de memória universal. Fatos antigos estão gravados naquele mundo como "memória real" e são captados através do pensamento por alguém imerso no estudo dos relatos antigos. As palavras "intuição" e "insight" (literalmente, "visão interior") tratam de atividades mentais que têm por vezes a ver com uma "percepção" daquele mundo. De fato, "insight" significa de acordo com o American Heritage Dictionary (edição de 1970), "a capacidade de discernir a verdadeira natureza de uma situação", "um vislumbre elucidativo". "Verdadeiras naturezas" são conceitos, logo não existem fisicamente; seguindo Steiner coloco a hipótese de que, através do "insight", isto é, uma percepção interna, o ser humano "vislumbra" o mundo das idéias [Steiner 2000 pg. 71].
Se se puder aceitar, como hipótese de trabalho, que o conceito de circunferência é uma "realidade" no mundo não-físico das idéias, com existência independente de qualquer pessoa, então não será difícil admitir que o pensar é um órgão de percepção, com o qual se pode "vivenciar" a idéia universal, eterna, de "circunferência". Nesse sentido, e usando minha caracterização para "conhecimento", pode-se dizer que uma pessoa pode ter um conhecimento do conceito "circunferência". Note-se que uma circunferência perfeita não existe na realidade física, assim como não existem "reta", "ponto", "plano", "infinito", etc. Assim, jamais alguém viu uma circunferência perfeita, assim como nenhuma pessoa atualmente viva experimentou com os seus sentidos atuais a Revolução Francesa ou encontrou Goethe, embora sejam, ambos, realidades no "mundo arquetípico" desse último.
Assim, evitei que bons historiadores sejam rotulados como tendo apenas informação e nenhum conhecimento…

7. Comentários gerais

É necessário reconhecer que as caracterizações apresentadas para dado, informação, conhecimento e competência não são usuais. Por exemplo, é comum considerar-se "dado" como um subconjunto próprio de "informação", isto é, o dado é um tipo particular de informação. Considero útil separar completamente esses dois conceitos, isto é, de acordo com as considerações feitas, os dados não são parte da informação. Esta, como foi visto, pode em alguns casos ser transmitida por meio de dados, isto é, estes podem ser uma representação da informação. Em outros, qualquer representação por meio de dados retira da informação sua essência. O mesmo se aplica a informação e conhecimento, e a conhecimento e competência.
É interessante observar que, nessas caracterizações, não existe "Teoria (formal) da Informação". O que Claude Shannon desenvolveu foi de fato uma "Teoria dos Dados". Theodore Roszack discorre sobre as polêmicas que o nome "Teoria da Informação" suscitou [Roszack 1993 pg. 12], já que a teoria de Shannon lida, por exemplo, com a capacidade de canais de comunicação, sem se importar com o conteúdo (significado). A capacidade desses canais refere-se à capacidade de transmitir dados, e não informação. Assim, no sentido aqui exposto, não se deve falar de "quantidade de informação", e sim "quantidade de dados" transmitida por um canal. "Bit" não é uma unidade de informação, e sim de dados, aliás, como o próprio nome o mostra ("BInary Digit"), pois um número por si não contém informação, é um dado puro.
Um dado é puramente objetivo – não depende do seu usuário. A informação é objetiva-subjetiva no sentido que é descrita de uma forma objetiva (textos, figuras, etc.) ou captada a partir de algo objetivo, como no exemplo de se estender o braço para fora da janela para ver se está frio, mas seu significado é subjetivo, dependente do usuário. O conhecimento é puramente subjetivo – cada um tem a vivência de algo de uma forma diferente. A competência é subjetiva-objetiva, no sentido de ser uma característica puramente pessoal, mas cujos resultados podem ser verificados por qualquer um.
A caracterização feita aqui pode ser de valia para empresas. Elas devem conscientizar-se de que não colocam informações no computador, e sim dados. Aqui há dois aspectos a considerar. Os dados devem representar o melhor possível as informações que devem ser obtidas a partir deles. Além disso, eles sempre serão interpretados pelos profissionais da empresa. O mesmo dado pode ser tomado como duas informações diferentes. Para evitar isso, não basta que represente claramente a informação desejada, mas que os profissionais sejam preparados para interpretá-lo da maneira esperada. Keith Devlin cita alguns casos trágicos, com desastres de aviação, devidos a interpretação errada de dados ou à representação ambígua das informações [Devlin 1999 pgs. 9 (o caso das Canárias, em 1977, com 583 mortos) e 76 (o caso de Cali, em 1995, com 159 mortos), respectivamente].
Por outro lado, é importante saber que é impossível transmitir conhecimento: o que se transmite são dados, eventualmente representando informações. Para que haja transmissão de conhecimento de uma pessoa para outra, é necessário haver interação pessoal entre os envolvidos, com a primeira mostrando ou descrevendo vividamente a sua experiência. Devlin cita dois casos de grandes empresas em que se tentou transmitir conhecimento através de dados, mas a transmissão só se concretizou com o contato pessoal [idem pgs. 176 e 177].

Já a competência só pode ser adquirida fazendo-se algo, isto é, as empresas que querem desenvolver competência em seus profissionais em certa área devem fazê-los trabalhar na mesma ou participar de projetos, preferivelmente juntamente com pessoas com grande competência.

(...)

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