Dado, Informação, Conhecimento e Competência
(Trecho do Artigo. Seções 5, 6 e 7)
(...)
5. Competência
Caracterizo Competência como uma
capacidade de executar uma tarefa no "mundo real". Estendendo o
exemplo usado acima, isso poderia corresponder à capacidade de se atuar como
guia em Paris. Note-se que, nesse sentido, um manual de viagem, se escrito em
uma língua inteligível, é lido como informação. Uma pessoa só pode ser
considerada competente em alguma área se demonstrou, por meio de realizações
passadas, a capacidade de executar uma determinada tarefa nessa área.
Pragmática foi associada a
conhecimento. Competência está associada com atividade física. Uma pessoa pode
ter um bom nível de competência, por exemplo, ao fazer discursos. Para isso,
deve mover sua boca e produzir sons físicos. Um matemático competente não é
apenas alguém capaz de resolver problemas matemáticos e eventualmente criar
novos conceitos matemáticos – que podem ser atividades puramente mentais,
interiores (e, assim, por uma de minhas hipóteses de trabalho, não-físicas).
Ele deve também poder transmitir seus conceitos matemáticos a outros escrevendo
artigos ou livros, dando aulas, etc., isto é, através de ações físicas
(exteriores).
A criatividade que pode ser
associada com a competência revela uma outra característica. Pode ser vinculada
com a liberdade, que não apareceu nos outros três conceitos porque não havia
qualquer atividade envolvida neles, exceto sua aquisição ou transmissão. No
exemplo dado, um guia competente de Paris poderia conduzir dois turistas diferentes
de forma diversa, reconhecendo que eles têm interesses distintos. Mais ainda, o
guia pode improvisar diferentes passeios para dois turistas com os mesmos
interesses mas com reações pessoais diferentes durante o trajeto, ou ainda ao
intuir que os turistas deveriam ser tratados distintamente. Cusumano e Selby
descrevem como a Microsoft Corporation organizou suas equipes de
desenvolvimento de software de uma forma tal que permitissem a criatividade
típica de "hackers" embora fossem, ao mesmo tempo, direcionadas para
objetivos estabelecidos, mantendo a compatibilidade de módulos através de
sincronizações periódicas [Cusumano 1997]. Aqui está uma outra característica
distinta entre homens e animais em termos de competência: os seres humanos não
se orientam necessariamente por seus "programas" como os animais e
podem ser livres e criativos, improvisando diferentes atividades no mesmo
ambiente. Em outras palavras, a competência animal é sempre automática,
derivada de uma necessidade física. Os seres humanos podem estabelecer
objetivos mentais para as suas vidas, tais como os culturais ou religiosos, que
não têm nada a ver com as suas necessidades físicas. Esses objetivos podem
envolver a aquisição de algum conhecimento e de certas competências, conduzindo
ao auto-desenvolvimento.
Competência exige conhecimento e
habilidade pessoais. Por isso, é impossível introduzir competência em um
computador. Não se deveria dizer que um torno automático tem qualquer
habilidade. O que se deveria dizer é que ele contém dados (programas e
parâmetros de entrada) que são usados para controlar seu funcionamento.
Assim como no caso do conhecimento,
uma competência não pode ser descrita plenamente. Ao comparar competências,
deve-se saber que uma tal comparação dá apenas uma idéia superficial do nível
de competência que uma pessoa tem. Assim, ao classificar uma competência em
vários graus, por exemplo, "nenhuma", "em desenvolvimento",
"proficiente", "forte" e "excelente", como
proposto no modelo de competência do MIT [MIT I/T], ou "principiante"
("novice"), "principiante avançado" ("advanced
beginner"), "competente", "proficiente" e
"especialista", devidas a Hubert e Stuart Dreyfus [Devlin 1999 pg.
187], deve-se estar consciente do fato de que algo está sendo reduzido a
informação (desde que se entenda o que se quer exprimir com esses graus).
Existe uma clara ordenação intuitiva nesses graus, que vão de pouca a muita
competência. Associando-se um "peso" a cada uma, como 0 a 4 no caso
do MIT e 0 a 5 no caso dos Dreyfus (nesse caso, entenda-se 0 como
"nenhuma), ter-se-á quantificado (isto é, transformado em dados), o que
não é quantificável em sua essência. Desse modo, deve-se estar consciente
também do fato que, ao calcular a "competência total" de alguém em
áreas diversas – eventualmente requeridas por algum projeto –, usando pesos
para os vários graus de competência, é introduzida uma métrica que reduz certa
característica subjetiva humana a uma sombra objetiva daquilo que ela realmente
é, e isso pode conduzir a muitos erros. A situação agrava-se nas habilidades
comportamentais, tais como "liderança", "capacidade de trabalho
em equipe", etc.
Não estou dizendo que tais
avaliações quantificadas não deveriam ser usadas; quero apenas apontar que o
sejam com extrema reserva, devendo-se estar consciente de que elas não
representam qual competência tem realmente a pessoa avaliada. Elas deveriam ser
usadas apenas como indicações superficiais, e deveriam ser acompanhadas por
análises subseqüentes pessoais – e, portanto, subjetivas. No caso de seleção de
profissionais, um sistema de competências deveria ser encarado como aquele que
simplesmente fornece uma lista restrita inicial de candidatos, de modo que se
possa passar a uma fase de exame subjetivo de cada um. Se o computador é usado
para processar dados, permanece-se no âmbito do objetivo. Seres humanos não são
entidades puramente objetivas, quantitativas e, desse modo, deveriam sempre ser
tratados com algum grau de subjetividade, sob pena de serem encarados e
tratados como quantidades (dados!) ou máquinas (isto é obviamente ainda pior do
que tratá-los como animais).
6. Campos intelectuais
Essas caracterizações aplicam-se
muito bem a campos práticos, como a informática ou a engenharia, mas necessitam
elaboração subseqüente para campos puramente intelectuais. Examinemos o caso de
um historiador competente. Não há qualquer problema com a sua competência: ela
se manifesta por meio de livros e artigos escritos, eventualmente de
conferências e cursos dados, etc. Por outro lado, é necessário estender a caracterização
de conhecimento, de modo a abranger um campo intelectual como o da história:
geralmente os historiadores não têm experiências pessoais dos tempos, pessoas e
lugares do passado. Ainda assim, um bom historiador é certamente uma pessoa com
muito conhecimento no seu campo.
Infelizmente, a saída que proponho
para essa aparente incongruência de minha caracterização não será aceita por
todos: admito como hipótese de trabalho que um bom historiador tem, de fato,
uma experiência pessoal – não das situações físicas mas do "mundo"
platônico das idéias, onde fica uma espécie de memória universal. Fatos antigos
estão gravados naquele mundo como "memória real" e são captados
através do pensamento por alguém imerso no estudo dos relatos antigos. As
palavras "intuição" e "insight" (literalmente, "visão
interior") tratam de atividades mentais que têm por vezes a ver com uma
"percepção" daquele mundo. De fato, "insight" significa de
acordo com o American Heritage Dictionary (edição de 1970), "a capacidade
de discernir a verdadeira natureza de uma situação", "um vislumbre
elucidativo". "Verdadeiras naturezas" são conceitos, logo não
existem fisicamente; seguindo Steiner coloco a hipótese de que, através do
"insight", isto é, uma percepção interna, o ser humano "vislumbra"
o mundo das idéias [Steiner 2000 pg. 71].
Se se puder aceitar, como hipótese
de trabalho, que o conceito de circunferência é uma "realidade" no
mundo não-físico das idéias, com existência independente de qualquer pessoa,
então não será difícil admitir que o pensar é um órgão de percepção, com o qual
se pode "vivenciar" a idéia universal, eterna, de
"circunferência". Nesse sentido, e usando minha caracterização para
"conhecimento", pode-se dizer que uma pessoa pode ter um conhecimento
do conceito "circunferência". Note-se que uma circunferência perfeita
não existe na realidade física, assim como não existem "reta",
"ponto", "plano", "infinito", etc. Assim, jamais
alguém viu uma circunferência perfeita, assim como nenhuma pessoa atualmente
viva experimentou com os seus sentidos atuais a Revolução Francesa ou encontrou
Goethe, embora sejam, ambos, realidades no "mundo arquetípico" desse
último.
Assim, evitei que bons historiadores
sejam rotulados como tendo apenas informação e nenhum conhecimento…
7. Comentários gerais
É necessário reconhecer que as
caracterizações apresentadas para dado, informação, conhecimento e competência
não são usuais. Por exemplo, é comum considerar-se "dado" como um
subconjunto próprio de "informação", isto é, o dado é um tipo particular
de informação. Considero útil separar completamente esses dois conceitos, isto
é, de acordo com as considerações feitas, os dados não são parte da informação.
Esta, como foi visto, pode em alguns casos ser transmitida por meio de dados,
isto é, estes podem ser uma representação da informação. Em outros, qualquer
representação por meio de dados retira da informação sua essência. O mesmo se
aplica a informação e conhecimento, e a conhecimento e competência.
É interessante observar que, nessas
caracterizações, não existe "Teoria (formal) da Informação". O que
Claude Shannon desenvolveu foi de fato uma "Teoria dos Dados".
Theodore Roszack discorre sobre as polêmicas que o nome "Teoria da
Informação" suscitou [Roszack 1993 pg. 12], já que a teoria de Shannon
lida, por exemplo, com a capacidade de canais de comunicação, sem se importar
com o conteúdo (significado). A capacidade desses canais refere-se à capacidade
de transmitir dados, e não informação. Assim, no sentido aqui exposto, não se
deve falar de "quantidade de informação", e sim "quantidade de
dados" transmitida por um canal. "Bit" não é uma unidade de
informação, e sim de dados, aliás, como o próprio nome o mostra ("BInary
Digit"), pois um número por si não contém informação, é um dado puro.
Um dado é puramente objetivo – não
depende do seu usuário. A informação é objetiva-subjetiva no sentido que é
descrita de uma forma objetiva (textos, figuras, etc.) ou captada a partir de
algo objetivo, como no exemplo de se estender o braço para fora da janela para
ver se está frio, mas seu significado é subjetivo, dependente do usuário. O
conhecimento é puramente subjetivo – cada um tem a vivência de algo de uma
forma diferente. A competência é subjetiva-objetiva, no sentido de ser uma
característica puramente pessoal, mas cujos resultados podem ser verificados
por qualquer um.
A caracterização feita aqui pode ser
de valia para empresas. Elas devem conscientizar-se de que não colocam
informações no computador, e sim dados. Aqui há dois aspectos a considerar. Os
dados devem representar o melhor possível as informações que devem ser obtidas
a partir deles. Além disso, eles sempre serão interpretados pelos profissionais
da empresa. O mesmo dado pode ser tomado como duas informações diferentes. Para
evitar isso, não basta que represente claramente a informação desejada, mas que
os profissionais sejam preparados para interpretá-lo da maneira esperada. Keith
Devlin cita alguns casos trágicos, com desastres de aviação, devidos a
interpretação errada de dados ou à representação ambígua das informações
[Devlin 1999 pgs. 9 (o caso das Canárias, em 1977, com 583 mortos) e 76 (o caso
de Cali, em 1995, com 159 mortos), respectivamente].
Por outro lado, é importante saber
que é impossível transmitir conhecimento: o que se transmite são dados,
eventualmente representando informações. Para que haja transmissão de
conhecimento de uma pessoa para outra, é necessário haver interação pessoal
entre os envolvidos, com a primeira mostrando ou descrevendo vividamente a sua
experiência. Devlin cita dois casos de grandes empresas em que se tentou
transmitir conhecimento através de dados, mas a transmissão só se concretizou
com o contato pessoal [idem pgs. 176 e 177].
Já a competência só pode ser adquirida
fazendo-se algo, isto é, as empresas que querem desenvolver competência em seus
profissionais em certa área devem fazê-los trabalhar na mesma ou participar de
projetos, preferivelmente juntamente com pessoas com grande competência.
(...)